
R.N.: O que mudou na sua personalidade desde o seu inicio no rap até hoje?
EDUARDO: O rap surgiu na minha vida quando eu ainda era um pré-adolescente, em plena formação física e mental. Imaturo, sem senso crítico e analítico, eu estava debutando na compreensão da engrenagem sórdida da sociedade. Nessa época, eu estava começando a entender o significado de palavras como; desrespeito, individualidade, ódio, racismo, tortura e exclusão. Eu era apenas mais um menino, reflexo dos garotos das favelas, que admirava e se espelhava nos criminosos que ascendiam socialmente através da arma e do sangue de terceiros. O contato com o rap representou inicialmente a minha salvação. É mais do que certo, que inevitavelmente eu seria do crime, pois sempre fui inconformado com a minha condição financeira, fruto das falcatruas da alta sociedade. Desde cedo, algo em relação a isso já me incomodava. Eu não sabia dizer com palavras o que era, mas já sentia; era a sede de justiça social em ebulição no meu corpo. Continuando. O rap me resgatou, mas, ao mesmo tempo me fez crescer mentalmente de forma precoce. Enquanto os moleques da quebrada estavam preocupados em jogar bola ou empinar pipa, eu já formulava minhas guerras pessoais para mudar o mundo. Eu já era completamente frustrado e infeliz, pois já compreendia que solidariedade, direitos humanos, direitos individuais, liberdade de ir e vir ou liberdade de expressão, não passavam de propaganda enganosa. Sem o rap, eu me enquadrava no ditado que diz: A ignorância é uma dádiva! Depois de algumas doses de informação, um homem de verdade não consegue ser feliz sabendo as verdades podres do mundo. Posso afirmar, que o rap me trouxe princípios morais sólidos incomuns para a faixa etária em que eu me apresentava. E infelizmente incomuns para a periferia. Antes do rap, eu nunca tinha discutido sobre a luta de classes ou sobre a necessidade de políticas afirmativas relacionadas à questão do cidadão negro. Nunca tinha ouvido falar se quer a respeito de auto-estima, amor próprio, coletividade, unidade, segregação racial e social, guerrilheiros, regimes tirânicos, democracia e revolução. Com o passar dos anos e com as muitas experiências de vida adquiridas, eu fui regando mais e mais essa semente plantada no meu cérebro, pra que eu pudesse colher bons frutos e dividi-los com o povo. A cada nova letra que eu escrevia, minhas opiniões e pontos de vista estavam mais lapidados e fortificados. Pra comprovar o que eu digo, basta o mano ouvir do primeiro cd que eu gravei até o último. Verá que há um grande aprimoramento ideológico. No primeiro disco por exemplo é flagrante que compus focado em problemas mais ligados ao meu bairro, a situações que ocorriam a minha volta. A minha grande preocupação como recém adolescente, era mostrar que eu também sabia falar gírias, que eu também era da rua, que eu também tomava enquadro, que eu também era vitima de preconceitos e que eu também era marginalizado. No meu caso, era até uma questão de sobrevivência musical provar tudo isso. Por ter a pele clara, mesmo sendo um mestiço com genes africanos como todos os brasileiros, eu sofria muita discriminação no cenário. Alguns manos no começo, nem acreditavam que as letras eram criadas por mim. Felizmente, não demorei muito pra perceber a importância do que eu tinha em minhas mãos e o tamanho da missão que o moleque do cortiço havia recebido do destino. Aprendi, que o rap transcendia o Eduardo, os meus manos, a minha quebrada, era mais do que municipal, estadual ou continental, era universal. A percepção da magnitude da grandeza desse estilo musical inigualável, deu contornos finais ao homem que eu sou hoje. O rap me educou, o rap me conscientizou, o rap abriu as portas para a cultura marginal, aquela que contém o livro que nenhum professor te indica, o rap formou a minha personalidade e o meu caráter, o rap desabrochou a minha ideologia, o rap trouxe essa gana sufocante de tentar revolucionar o nosso estado de escravo funcional a todo custo, nem que seja com a própria vida.Eu posso afirmar sem medo de errar, que a única escola que eu tive durante toda a minha existência foi o rap. Dos meus doze anos de idade até hoje, tudo que eu fiz na minha vida estava linkado de alguma forma ao Ritmo e a Poesia dos guetos. Não sei pro mundo, mas pra mim, rap e Eduardo são sinônimos.
R.N.: Qual foi o último livro que você leu? Qual livro você acha que toda pessoa deveria ler?
EDUARDO: O último livro que eu li era a respeito de Karl Marx, se chamava o julgamento do século. Faz parte de uma coleção, onde vários personagens históricos, têm suas vidas profissionais e pessoais expostas para que o leitor possa fazer uma analise não só do mito, mas também do homem e tirar suas próprias conclusões. É bastante interessante. O trágico da história desse livro, não está em seu conteúdo e sim, na forma como ele veio parar em minhas mãos. Minhas filhas estudam na mesma escola. Uma escola publica no bairro do Grajaú, como se o rap permitisse o contrário. Nessa escola, tem uma biblioteca que deve estar em reforma a uns quatro anos. Por causa da reforma as crianças não podem ler. E o mais inacreditável, é que na biblioteca inoperante se encontram vários volumes de textos indigestos para os opressores. Que deveriam ser leitura obrigatória de todos às pessoas da periferia. De tanto as minhas filhas Duda e Gabriela insistirem que queriam ler, uma professora resolveu ajuda-las nessa perigosa empreitada. Então, de forma ilegal, ela traficou o livro de prateleiras empoeiradas direto pro interior da mochila de uma delas. O que possibilitou que o flagrante chegasse em minhas mãos. O foda é saber, que nem armas são criminalizadas dessa forma no ambiente escolar. Minhas filhas e a professora se fossem apanhadas provavelmente seriam torturadas e mortas por alguns gambés filhos da puta. É truta, não se espante, é só lembrar que durante a escravidão o homem negro que soubesse ler era morto. Informação é e sempre será proibida pro povo. Quem deve ter ficado muito espantado, deve ter sido o corpo docente da escola, quando minhas filhas reivindicaram o direito a posse de um livro. Eles devem ter se perguntado; Caralho! A onde foi que eu errei? Porque será que essas faveladas querem ler, se eu fiz de tudo pra que elas assistissem novela, programas de fofoca, ouvissem música sem ideologia e se contentassem em serem diaristas? Moral da história... Só um plano maquiavélico que objetiva a conservação, da imensa massa de manobra, explica a ação criminosa do Ministério da Educação, ao manter uma série de livros desperdiçados num depósito em detrimento de alunos que necessitam de informação e de acesso à história não oficial. Se o problema é o espaço físico, não seria simples leva-los as classes? Que burocracia estúpida é essa, que permite que crianças leiam apenas em determinado espaço. Será que se você não ler dentro de uma biblioteca, as informações não entram no seu cérebro? Isso, é só o aperitivo do ensino público que aprova alunos não por mérito, mas por freqüência escolar. Do ensino publico que dissemina o racismo, ensinando os alunos com material didático que exalta o europeu e inferioriza a ancestralidade africana e seus costumes. Do ensino público que aceita atitudes de discriminação. Crianças negras se tornam alvos de brincadeiras racistas, piadas racistas, atitudes racistas, e todos se omitem. Quando elas reclamam pros professores são aconselhadas a deixar pra lá, aceitar como se fosse natural ser colocado em situações vexatórias. Quando eu digo que temos que tomar o poder via congresso nacional, eu quero dizer que todos os dias os nossos filhos estão nas mãos dessas pessoas incapacitadas, que trabalham veementemente pra sua destruição. E alguns, marionetes dos boys, ainda falam que eu sou exagerado, que eu fantasio pra lucrar com o sangue, pra vender cd através da desgraça alheia. Será que é o Eduardo mesmo que lucra com o sangue derramado nas ruas? A respeito do livro que todas as pessoas deveriam ler, sem duvida nenhuma eu indico a biografia de Malcolm X. Lendo a história desse grande militante da causa negra, o leitor será capaz de perceber o quanto o acesso a leitura é transformador. Verá que não há vicio ou violência que resista a palavras num papel.
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